domingo, 4 de junho de 2017

O espantalho da corrupção: uma carta a Deltan Dallagnol, por Sergio Saraiva



"Não raras vezes a Justiça mostra ter lado.
Lado, partido político e classe social. Basta ver as manifestações públicas de vários dos seus colegas de magistratura desde as manifestações de 2013. Estão nelas uma clara opção sócio-político-partidária."

GGN.- Prezado Deltan Dallagnol, não foi sem um bom bocado de preocupação que terminei a leitura de mais um dos seus artigos para a imprensa, neste caso, o ”As ilusões da corrupção” para a Folha de São Paulo de 04 de junho de 2017.
Moro e Aécio
“Todo poder emana do povo e por ele ou em seu nome é exercido”.
Falemos de ilusões.

Abro esta minha carta com o artigo primeiro da nossa Constituição Federal de 1988 – a “Constituição Cidadã”. Em vez dos verbos no presente do indicativo nessa assertiva, talvez fosse melhor tê-los usados no futuro do presente do indicativo. Mostraria melhor nossa situação real e o nosso desejo e nosso otimismo. Mas, se é para abrirmos mão das ilusões, o tempo correto é o do futuro do pretérito. Sou um otimista iludido e incurável.
Quanto às preocupações, elas podem ser resumidas no ato falho contido no seu texto:
“A lei não precisa se ajoelhar diante dos barões; o país não tem que caminhar sobre uma ponte instável; a população não está condenada a ser governada pela cleptocracia”.
Troque a palavra “lei” pela palavra “povo” e eu concordaria inteiramente com ele. Como está, é a causa da minha preocupação. Mesmo o uso da palavra “população” no lugar de “povo” não deixa de ser significativo. População e povo não são as mesmas coisas.
Povo é cidadão. Os escravos do século XIX eram parte da população.
Quanto à lei, como você mesmo lembra ao citar Maquiavel, no mais das vezes, é um instrumento dos poderosos: ”aos amigos os favores, aos inimigos a lei". Poderia também ter lembrado de Otto von Bismark e a sua sentença em relação à feitura das leis e das salsichas.
Mas não porque as nossas leis gerais sejam más ou escritas especialmente para favorecer. Muitas o foram. Mas porque sua aplicação é seletiva. E a seletividade na sua aplicação depende de o Judiciário ser também ele seletivo.
Como você mesmo sábia e didaticamente explica: “... é simples: o mecanismo da punição é a lei. Os donos do poder garantem sua própria impunidade porque influenciam tanto o conteúdo da lei como quem a aplica”.
Sim, os donos do poder influenciam os que fazem e os que aplicam as leis. Por isso são os donos do poder, quando não são também os pais dos deputados e dos juízes. O povo, constitucionalmente, deveria ser o dono do poder. Mas não o é, pelo menos , por agora.
Não raras vezes a Justiça mostra ter lado.
Lado, partido político e classe social. Basta ver as manifestações públicas de vários dos seus colegas de magistratura desde as manifestações de 2013. Estão nelas uma clara opção sócio-político-partidária.
Onde isso no seu texto? Vê o porquê da minha preocupação?
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Seu texto ataca a corrupção. Mas a corrupção nele aparece como um espantalho.
“Podemos e desejamos eliminar a grande corrupção e alcançar mais igualdade, estabilidade e democracia”.
Os corruptos seriam os políticos que fazem as leis para beneficiar-se e beneficiar os donos do poder.
“Como consequência, aqueles que deveriam representar a população se ocupam de agradar as grandes empresas em troca de leis, subsídios e contratos públicos”.
O judiciário – um dos nosso três Poderes constitucionais – também não é um legítimo representante da “população”? E os promotores e os juízes que aplicam tais leis? E a Corte Suprema que não as declara inconstitucionais?
Como é possível tamanhos podres poderes com a participação de apenas dois dos três Poderes. Os dois que são eleitos pelo povo. O povo não é sábio? Necessita de tutores que o guie pelas escolhas certas? Mais preocupações.
Qual seria a solução?
Nas suas palavras: “este é o momento para ir além da mera alternância no poder dos corruptos de estimação - ou dos menos rejeitados”.
O que você está propondo Dallagnol?
Só não haverá alternância no poder se, suprimindo a democracia, instalássemos uma ditadura no país. Isso não resolve nada. Essa é a pior ilusão – a ilusão totalitária.
Uma luta do bem contra o mal que só pode ser vencida com mais punição e mais poder a Justiça? Mas se a Justiça tiver lado...
Um salvador da Pátria puro e incorruptível? Mais poder a ele para nos salvar da corrupção? Já tivemos vários. Todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente.
Podemos apontar e devemos apontar muitas falhas em relação à Lava-Jato. Que avançou sobre direitos individuais, que se vale demasiadamente da escandalização, que é parcial ou que foi instrumentalizada. Mesmo assim, há nela e no que ela se transformou no imaginário popular – uma entidade à parte do nosso sistema de poder - um mérito inegável: tornou palpável algo que era, antes dela, um sentimento generalizado – a corrupção é parte inerente do nosso sistema de poder. Não temos mais ilusões.
Esse tipo de corrupção tem um nome: patrimonialismo. Superá-lo é parte do nosso caminho de aprendizagem coletiva da vivência democrática e republicana. E a Lava-Jato, por vezes de modo contraditório, tem contribuído muito para isso.
Necessitamos fazer deste país democrático um país republicano. Isso é avançar. Mas isso não parece ter sido percebido no seu texto.
“É preciso coragem e perseverança, insistindo em reformas que, em meio a indesejáveis dores do parto, possam nos trazer um novo Brasil”.
Que reformas dolorosas são essas, Dallagnol? Quem fará as vezes da parteira e quem suportará as dores do parto?
Vamos reformar o Judiciário? Tornar mais democrático o acesso a ele, incluso o acesso às prerrogativas de exercê-lo como poder?
Vamos tornar mais efetivo e menos sujeito à constrangimentos judiciais o execício do artigo 5º da nossa Constituição? Nele estão o direito de livre manifestação do pensamento, o direito de resposta e o direito à liberdade de consciência e de crença - e penso eu, da falta dela. Além do direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
Quantos dos que lhe apoiam pelas redes sociais em sua luta contra a corrupção não atentam, eles próprios, paradoxalmente, contra esses direitos?
Você pleiteia mais poder para prender a “elite”? Corre o risco de somente colocar outra ou repor a mesma “elite” de sempre, mais poderosa agora, no mesmo lugar de sempre. Essas são ilusões perigosas. Já nos ensinaram:
“há que se mudar tudo para que tudo fique da mesma forma como sempre foi”.
Não temos elites, temos classes dominantes. E se me permite? Inclusive e principalmente no Judiciário.
Você pede reformas? Então, siga em frente com a Lava-Jato. Mas tire dela todo e qualquer ranço de seletividade. Abandone os espantalhos.
Você quer mais poder para isso? Pleiteie mais poder para o povo. Se posso lhe dizer alguma coisa.
Comece, já no seu próximo texto, por utilizar sem temer a palavra povo. E passe a pedir sem temer por “Diretas Já”.
“Todo poder emana do povo e por ele ou em seu nome é exercido”.
Nada apavora tanto aos donos do poder.
Um abraço fraternal.

PS1: Oficina de Concertos Gerais e Poesia – são ridículas todas as cartas de amor – Fernando Pessoa. Nesta Oficina, inclusive as de amor à causa.
PS2: para não dizer que não falei de flores:

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