sexta-feira, 4 de maio de 2018

Meu sentimento do mundo atual, por Leonardo Boff


"O recrudescimento do conservadorismo e de poderes autoritários são expressões da crise de nossa cultura. Quer dizer, faltam-nos um horizonte de esperança que aponte para um outro tipo de mundo diferente deste demasiadamente inumano; faltam-nos lideranças que possam apontar rumos na direção do novo. Nesse vazio social, político e ético-espiritual surge quase fatalmente o pensamento da ordem e da disciplina. Os valores da ordem a qualquer custo e da disciplinação dos comportamento sociais são típicos das tendências políticas conservadores que podem terminar no nazi-fascismo. Este nasceu, exatamente, do seio de uma grande crise que se havia instaurado na Alemanha, vencida e humilhada pela Primeira Grande Guerra. Apareceu um líder carismático que impunha ordem e disciplina a todos que foi Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália. Hoje, a nível mundial, corre-se semelhante risco de que o caos social presente um pouco em todas as partes, abra espaço para governos ontocráticos ou de personalidades que se orientam pelo uso do poder como o presidente Trump nos USA e Erdogan na Turquia para ordenar toda a sociedade e eventualmente todo o mundo."

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Do site de Leonardo Boff:

O conhecimento e a complexidade do mundo nesse limiar de terceiro milênio. A tendência à naturalização e a banalização de quase tudo, suscita incertezas, cria um mal-estar e lança um desafio: como revitalizar o sentido de humanidade e de sua espiritualidade comprometida. Implica, pois, numa reinterpretação das sociedades, dos seus modos de vida, do significado das interações, das relações de poder, da ideia de solidariedade e segregação, de suas singularidades transitórias, de cenários contrastantes, em que “o milagre tecnológico” não cumpriu as promessas de felicidade dos seres, da leitura de contextos impactantes geopolíticos, controlados pela influência das grandes corporações. Quais os efeitos dessa realidade nos processos educacionais, culturais e no meio ambiente dos territórios? São questões abordadas pelo Prof. Leonardo Boff nesta entrevista exclusiva para a Revista Contexto.

  1. O senhor afirma que em ciência trabalha-se com hipóteses e caminhos e não com verdades e que é necessário, não só conhecer, mas saber. Sobre a urgência da democratização do conhecimento que caminhos podem ser trilhados para se conceber a multiplicação dos saberes, não somente a partir da academia para as comunidades (ainda pouco incipiente), mas sobretudo a possibilidade de acolhimento, compartilhamento e valorização dos saberes populares pela universidade como bem ressalta Boaventura Souza Santos?
R/ Hoje, especialmente depois da física quântica de Borhr/Heisenberg trabalha-se com a indeterminação (Unbestimtbakeitprinzip, mal traduzido como princípio de incerteza) dos fenômenos e da emergência de novas possibilidades contidas no processo evolucionário e consequentemente nos processos sociais. A partir desta compreensão todos os fenômenos e todos os saberes, pouco importa sua procedência, são valorizados como manifestações das forças diretivas do universo e daquela Energia de Fundo que tudo sustenta e que preside o curso da evolução. Quem melhor se deu conta desta realidade foi o prêmio Nobel em química (1977) Ilya Prigogine que escreveu um belo livro sobre “A nova aliança”, publicado pela Universidade de Brasília. Trata-se, segundo ele, da aliança de todos os saberes, dos xamãs indígenas até dos místicos, pois cada saber é uma janela que nos descortina dimensões do real. O que é esse real permanece um mistério, mas é acessível por múltiplos caminhos sem que nenhum deles possa esgotar todas as possibilidades de seu conhecimento. Daí a importância de valorizar todos os saberes. Entre nós foi Paulo Freire quem mais abriu este debate, postulando a troca de saberes, entre o popular e o científico. Ignorante, diz ele, é quem pensa que o povo é ignorante. O povo sabe a seu modo e nos tem muito a ensinar. E ele tem também muito de aprender do saber científico. Eu mesmo tenho postulado a inserção do saber popular ao saber humanístico da tradição medieval com o saber científico da modernidade. Hoje pelo processo da mundialização da experiência humana temos a possibilidade desta imensa troca de saberes, de cosmologias, de formas de produção e de conhecimentos de elementos da natureza, de caminhos éticos e espirituais que as várias culturas produziram. Lamento que o paradigma do saber ocidental (técnico-científico) tenha se imposto de forma tão poderosa à todas as culturas, criando, diria, um pensamento único, uma espécie de fundamentalismo científico. Só o que passa pelo crivo do saber científico nos moldes ocidentais é legítimo, os demais saberes são postos sob suspeita ou colocados de lado especialmente a razão sensível ou cordial. Mas mais e mais vai se impondo a dialogação de todos os saberes, levando a um conhecimento mais profundo da realidade e consequentemente de respeito e de veneração pelo que foi pensado e vivido pelas várias culturas.

  1. Com raras exceções, o modelo da escola básica brasileira ainda assemelha-se em muitos aspectos à do século XIX que por sua vez teve forte influência jesuítica e mais tarde nuances do modelo francês. A universidade, considerada recente na cena nacional (tem menos de cem anos de fundação), também adotou características europeias em sua configuração e embora seja um espaço de produção crítica e de interpretação socioeconômica, política e comportamental do país, tem sido criticada por um histórico de elitização acadêmica. O que falta para que possamos ter finalmente uma escola e uma universidade mais inclusiva e com o “DNA” brasileiro?
R/ Um dos traços de nosso subdesenvolvimento consiste na nossa mimetização e replicação de modelos estrangeiros. Isso é uma consequência do processo de colonização que nos impôs a mesma língua, os mesmos modelos de pensar, de organizar a sociedade e os valores próprios dos colonizadores. Nunca conseguimos totalmente nos libertar da introjeção do colonizador dentro de nossas mentes. Isso freia nossa criatividade e limita o nosso imaginário. Por outro lado, pela via da cultura, mormente de matriz popular, se conseguiu romper com esse cerco epistemológico. O povo, como o tem mostrado bem o historiador José Honório Rodrigues em sua obra e também Celso Furtado, foi o criador das principais características de nossa cultura, com sua música, sua arte, sua poesia e sua forma de organizar a vida cotidiana. Pelo fato de estar à margem do processo civilizatório dominante que reproduziu e valorizava tudo o que vinha de fora, começou ele mesmo com sua intuiçCarta ao general X”umano. Como pedia Antoine de Saint Exupre os humanos no lugar da competiçdecisivos: o paradigma do cuidado quão e fantasia criadora a projetar novas formas de ler o mundo. Exemplo típico disso é a obra de Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas e toda a literatura local nordestina que tomava como temas situações da cultura local. Na academia devemos romper com um certo superego castrador que nos vem dos paradigmas estrangeiros e começar a pensar e a dizer a nossa realidade com os nossos instrumentos teóricos. Vale dizer, pensar o Brasil a partir do Brasil e de suas singularidades. O livro de Darcy Ribeiro “O povo brasileiro” é um hino à cultura brasileira em grande parte mestiça e genuinamente criadora, a ponto de, em sua exaltação, projetar o Brasil como a “nova Roma dos trópicos” não imperial e guerreira como a de outrora, mas cordial e aberta a todos os povos.
  1. Por falar em escola básica brasileira, qual seria o modelo possível que respeitasse nossas características, mas alcançasse níveis mais assertivos de eficiência e satisfação?
R/ Para mim deveríamos seguir o caminho apontado por Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire que pediam que a escola derrubasse suas paredes e colocasse os estudantes em contato direto com a realidade, sentindo na pele, as diferenças culturais, valorizando os vários estilos de vida e pondo-se na escola do povo para aprender dele como sobreviver no meio das profundas desigualdades e, ao mesmo tempo, criando espaços de alegria e de lazer. Colocar-se no meio da realidade, é obrigar-se a dialogar com o entorno e aprender dos desafios e das diferenças. A escola como instituição não perderia seu significado: seria o lugar da síntese, da ordenação dos saberes aprendidos e da incorporação daquilo que a humanidade acumulou em séculos de aprendizado. Entretanto, face às mudanças ocorridas no sistema-vida e no sistema-Terra que são ameaçadoras, devido à super-exploração dos bens e recursos naturais, tirando o equilíbrio da natureza e do aquecimento global no qual já estamos dentro, é imperativo incorporar novos valores em todo o processo educativo. Nomeio dois que considero decisivos: o paradigma do cuidado que é uma relação amorosa e protetora da natureza e de toda vida especialmente no que tange às relações sociais. Caso não cuidarmos da única Casa Comum e não fizermos transformações exigidas pelo cuidado (nova relação benigna para com a natureza e de maior solidariedade entre os humanos no lugar da competição) dificilmente escaparemos de uma tragédia ecológico-social que poderá devastar a biosfera e por em risco até a existência da espécie humana. O segundo paradigma seria uma visão espiritual da realidade. Espiritualidade aqui não é entendida como monopólio das religiões, mas como uma dimensão objetiva antropológica, do profundo humano. Como pedia Antoine de Saint Exupéry em sua “Carta ao general X”, deixada sobre a mesa antes de se precipitar com seu avião no Mediterrâneo. Afirmava ele que nós humanos temos cultivado o mundo corpo com todo o tipo de exercícios, o mundo da psiqué com os recursos das várias correntes psicanalíticas. Mas esquecemos de cultivar o mundo do espírito. Este é feito de amor, de solidariedade, de compaixão e de veneração. Porque não o cultivamos, continua ele, temos esta guerra com tantas vítimas humanas e culturais. E termina com uma evocação de uma relação para com Deus como uma espécie de cimento que integra todas as dimensões do humano. Essa espiritualidade nos humaniza, alimenta o sentido de nossa vida, nos faz mais sensíveis aos outros e à dores da natureza e nos move na direção do outro. Estimo que tais dimensões devem ser incluídas no processo educativo, pois este sempre se propôs humanizar o humano, permitir que virtualidades luminosas de nossa existência pudessem irromper e florescer e manter sob controle as dimensões de sombra.
  1. O Papa Francisco tem adotado um discurso de crítica social contundente que o credencia como uma liderança não apenas no âmbito religioso, mas sobretudo no viés político, portanto mais insurgente . Suas falas instigam a reflexões a respeito de uma postura e uma fé cristã mais comprometida com os valores humanos, ética e a preservação da vida, do cuidado com os mais pobres e povos tradicionais, sobre a ganância do capital que por sua vez suscita mais injustiças. Como o senhor avalia a postura do Papa, considerando que via de regra a Santa Sé, costuma manter uma visão mais cautelosa e conservadora a respeito desses fatos?
R/ Para entender as posturas do Papa Francisco importa lembrar que ele vem do caldo cultural e eclesial da Igreja latino-americana que já no final dos anos 60 do século passado fez uma opção pelos pobres contra a pobreza e em favor da justiça social. Daí nasceu a teologia da libertação que confere centralidade à libertação dos oprimidos, feita por eles mesmos, quando conscientizados e organizados e apoiados por grupos de outras classes que consideram justas e legítimas suas reivindicações. O Papa Francisco que vem desta visão das coisas, universalizou para toda a Igreja a perspectiva libertadora da fé cristã. Por causa da centralidade conferida aos pobres que são na verdade empobrecidos e injustiçados, ele tem um lado: está sempre do lado deles e contra aqueles que produzem seus padecimentos. Daí que claramente condena o sistema econômico-financeiro acumulador como anti-vida e assassino de milhões de pobres. O Papa Francisco deixa para trás por razões evangélicas e éticas a atitude convencional e equidistante do magistério pontifício acerca das questões sociais e se engaja em favor da justiça social mundial.
5 .A emergência material, o individualismo, o estímulo ao consumo exacerbado, o culto à personalidade e ao corpo, a ostentação como sinônimo de status, o fanatismo religioso, a negação do ser e o sentido de solidariedade, são sintomas de um mundo cada vez mais intolerante e que não se constrange ao cultivar uma cultura de morte. O que ocorreu com as instituições e seus valores?
R/ Um projeto civilizatório, fundamentalmente montado no século XVI que se propunha o domínio do mundo, dos povos e da natureza em função de um enriquecimento ilimitado de bens materiais, tinha que, num certo momento, mostrar seu caráter redutor e até perverso. Ele esqueceu as duas fomes que devoram o ser humano: a fome de pão que é saciável (o processo industrialista da modernidade) e a fome de transcendência que é insaciável, porque se funda em valores não materiais e intangíveis como a convivência pacífica, o respeito às diferenças, a amorosidade, a solidariedade, o cuidado daa Casa Comum e a total abertura do ser humano em todas as direções, incluindo o infinito. Ele saciou de pão a primeira fome. Mas deixou minguar a segunda fome. Dai ser a nossa crise, uma crise sistêmica que afeta a nossa compreensão do ser humano e do mundo, reducionista, individualista e alheia a bens espirituais que, cuja consequência é humanizarmo-nos mais. Hoje nos damos conta de que este tipo de mundo, já globalizado, entrou em profunda crise nos seus próprios fundamentos e não encontra recursos de seu próprio arsenal para dar uma solução aos problemas que ele mesmo criou. Ou mudamos ou vamos ao encontro do pior.
6.Houve um tempo (século XVIII) em que os Reis e seus Estados Nacionais justificavam o poder exaltando-o como uma graça divina, ou seja, estavam acima do bem e do mal. Posteriormente, a Declaração dos Direitos do homem e do Cidadão, entre outras convenções, surgiram posteriormente como formas de “corrigir” abusos dos poderes constituídos ou de governos déspotas. Como o senhor ver o recrudescimento de governanças com perfil autoritário nesse início de século XXI?
R/ O recrudescimento do conservadorismo e de poderes autoritários são expressões da crise de nossa cultura. Quer dizer, faltam-nos um horizonte de esperança que aponte para um outro tipo de mundo diferente deste demasiadamente inumano; faltam-nos lideranças que possam apontar rumos na direção do novo. Nesse vazio social, político e ético-espiritual surge quase fatalmente o pensamento da ordem e da disciplina. Os valores da ordem a qualquer custo e da disciplinação dos comportamento sociais são típicos das tendências políticas conservadores que podem terminar no nazi-fascimo. Este nasceu, exatamente, do seio de uma grande crise que se havia instaurado na Alemanha, vencida e humilhada pela Primeira Grande Guerra. Apareceu um líder carismático que impunha ordem e disciplina a todos que foi Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália. Hoje, a nível mundial, corre-se semelhante risco de que o caos social presente um pouco em todas as partes, abra espaço para governos ontocráticos ou de personalidades que se orientam pelo uso do poder como o presidente Trump nos USA e Erdogan na Turquia para ordenar toda a sociedade e eventualmente todo o mundo.
7.Depois da Guerra Fria, imaginou-se que o mundo poderia experimentar uma nova era de paz progresso e tolerância. A queda do muro de Berlim em 1989, expressa simbolicamente essa perspectiva otimista. No entanto hoje nos deparamos com várias ameaças bélicas envolvendo nações como Síria, Coréia do Norte, Afeganistão, Iraque, Estado Islâmico. Por outro lado, Estados Unidos, Rússia e China, se posicionam em meio a esses conflitos, procurando ampliar o poder de influência politica e econômica. Estamos às portas de uma Terceira Guerra Mundial ou ainda é possível acreditar num equilíbrio de forças e na conciliação?
R/ Eu temo uma escalada dos conflitos que podem culminar numa guerra de armas altamente letais (químicas, biológicas e nucleares). Estamos assistindo uma espécie de balcanização das guerras regionais, todas elas com alta letalidade de populações civis. São hoje quarenta frentes de guerra. Pode-se chegar a um ponto em que a humanidade se dá conta de que, a elevar o nível de utilização de armamentos altamente destrutivos, pode ela mesma desaparecer. Ai creio que pode ocorrer, inevitavelmente, uma governança global dos sistema-Terra-humanidade que deverá ser pluralista para impedir a manipulação de algum pais mais poderoso sobre os demais. Então seria viável uma democracia mundial que era o sonho de Kant quando escreveu seu último texto sobre “A paz perpétua”, fundada na hospitalidade geral entre todos e no respeito aos direitos humanos.
  1. O ano de 2013 é simbólico no que concerne às manifestações populares e estudantis no mundo e também para refletirmos sobre a importância da democracia. Registrou-se a partir daquele ano as “Primaveras Árabes” (Líbia, Egito), o “Movimento Ocupe”(Seatle -Estados Unidos) e “Podemos” (Espanha). Que lições para o presente e futuro são possíveis de absorver desses movimentos?
R/ Estes movimentos revelam o fracasso de nossos sistemas de representação via partidos. Os partidos já não recolhem a vontade geral e os anseios novos que vão emergindo na sociedade, devido às muitas mudanças, seja tecnológicas, seja sociais e de mentalidades. Esses movimentos revelam antes um desalento geral, no estilo do livro de Freud “O mal-estar na civilização”. Este psicanalista era um atento observador das tendências da história. Logo no início de seu texto denuncia a crise de valores e de referências coletivas que provocavam o mal estar ou a crise de civilização. Pouco depois, veio a Segunda Grande Guerra, fruto deste mal-estar generalizado. Tenho a impressão de que vivemos tempos semelhantes. A rebeldia e a protestação são sinais reveladores da crise. Mas todos estes movimentos não conseguiram ainda apresentar uma alternativa viável que desse conta da crise para dar o salto rumo a outro tipo de sociedade. Esse é o problema geral: a ausência sofrida de alternativas. Meu sentimento do mundo me diz que a solução possível virá do campo da ecologia integral. Quando os seres humanos se deram conta de que podem realmente se autodestruir (já se construíram os meios para tal) aí prevalecerá a razão e a lógica da vida que quer mais vida e tenta evitar a morte. Então mudaremos como instinto de sobrevivência.
9.O senhor costuma se referir à expressão “convenções ocultas” quando aborda questões ligadas ao poder econômico, suas práticas e impactos nas sociedades. Darcy Ribeiro utilizava-se de um termo “tolerância opressiva” para designar um tipo de manipulação em que o opressor invade o corpo e a mente de sua vítima para dominá-la. Georg Orwell no seu livro 1984,- o “Big Brother” também instiga essa perspectiva futura. Os dois autores se referem à estratégias politico-ideológicas. O senhor aqui se atém mais à questão do poder do capital. No fundo elas todas estão entranhadas? Como essas convenções ocorrem na prática?
R/ Respondo sem dar maiores mediações. As lógicas ocultas ou conexões ocultas estão ligadas ao sistema do capital que conseguiu depois da queda do muro de Berlim se impor em todo o mundo. Já não se trata da desmontagem teórica do sistema do capital já amplamente feita a começar por Marx e culminando na Escola de Frankfurt para citar as referências maiores. Ocorre que isso é insuficiente. A força do sistema é ter-se tornado uma cultura, a cultura do capital que penetrou em todos os âmbitos da sociedade, nos hábitos e na leitura do mundo. As diferentes mídias foram os grandes instrumentos de consolidação desta cultura. Essa cultura do capital nos mantem todos de alguma forma reféns. Obriga-nos a trocar de tempos em tempos o computador, caso contrário os programas não funcionam, os celulares e outros aparatos. Trocamos de tênis, de roupas, de formas de gozar das férias, consumir bens culturais e materiais. Passamos da uma economia de mercado para uma sociedade de mercado, como genialmente o denunciou ainda em 1944 Karl Polaniy em su famoso livro “A Grande Transformação”. Nesse tipo de sociedade tudo vira mercadoria até as coisas mais sagradas como órgãos humanos, bens religiosos, nada escapa da lógica do ganho com os negócios de tudo e com tudo. Essa é a grande perversão, o mal de nossa cultura que não merece ser perpetuada porque fez da própria Terra um balcão de negócios e está destruindo as bases físico-químicas que sustentam a vida. Ou mudamos de paradigma no qual nos sentimos parte da natureza e não seus senhores que podem explorá-la a seu bel-prazer, ou então vamos ao encontro de nosso próprio desaparecimento sobre o planeta Terra. A Terra continuará porque ela não precisa de nós, nós sim precisamos dela, mas coberta de cadáveres. E seguirá co-evoluindo até emergir um ser capaz de suportar o espírito e fazer sua trejetória com outro tipo de história, oxalá, mais benigna que a nossa.
  1. O Brasil não se constitui numa exceção quando se fala em corrupção, contudo, ela tem estado tão enraizada na história do país, a ponto de ser naturalizada nas relações sociais. Nos últimos 50 anos, a situação se agravou de tal modo, que não se pode falar do problema de um poder apenas, ou de um período. Quais são as raízes dessa tragédia institucional brasileira e quais as soluções a médio e longo prazos para mitigá-la?
R/ Os países que um dia foram colonizados geralmente inventaram estratégias de corrupção para escaparem da dureza da dominação colonial. Isso se agravou ainda mais com a escravidão que é uma corrupção absoluta ao fazer do próximo uma “peça”, um objeto de uso e de abuso. O jeitinho brasileiro supõe uma mentalidade corrompida mas que significa uma forma de navegação social para escapar da lei e de conseguir o que é pretendido. Essa lógica não mudou com a república e com os vários ensaios democráticos. Então não temos corrupção. Estamos assentados sobre um sistema corrupto que sobrevive à condição de manter este sistema que beneficia a quem detém seja o poder de Estado, seja o poder econômico. Não vejo outra solução senão uma refundação do Brasil sobre outras bases. Essa refundação virá de um conjunto de forças e valores, hegemonizados pelos movimentos sociais mais organizados que, somados a outros grupos e setores partidários e intelectuais elaboraram um pensamento alternativo. Isso pressupõe o fracasso total do tipo de democracia que temos e a urgência de colocar em seu lugar um novo tipo de Estado, novas formas de representação popular e um projeto de desenvolvimento inclusivo, a natureza incluída, que supere a nossa maior vergonha: a abissal desigualdade social. Então poderíamos florescer como uma nação moderna e minimamente justa.
  1. Em suas palestras, o senhor tem afirmado que apenas 5% da vida são visíveis e que 95% invisíveis, o que remete a pensar sobre a fragilidade dos organismos vivos na Terra, bem como da indiferença de governos, corporações e de cidadãos comuns com ambientes tão delicados. De que modo é possível transformar essa visão tão contraditória de exploração predatória do Planeta cujo alerta fora feito no Brasil com a Eco-92? Como é possível formar uma consciência coletiva mundial em torno da questão?
R/ Esta questão para mim é fundamental. Ela precisa realizar o que a Carta da Terra de cuja redação participei, diz: ”Como nunca antes na história o destino comum nos conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no coração. Requer um novo sentido de interdependência global e de responsabilidade universal. Devemos aplicar com imaginação a visão de um modo de vida sustentável aos níveis local, nacional regional e global” . A mesma petição é feita pelo Papa Francisco (que cita a Carta da Terra) em sua encíclica destinada a toda a humanidade: Laudato Si: sobre o cuidado da Casa Comum. Necessitamos uma mudança na mente, quer dizer, uma nova visão do universo e da Terra e de nosso lugar e missão no conjunto dos seres: que tudo está interconectado, que a Terra é um superorganismo vivo e que nós somos seus guardiães e cuidadores. Um mudança no coração: não é mais suficiente a tecno-ciência que analisa os fenômenos, precisamos de um outro exercício da razão, da razão sensível e cordial, aquela que é a base da ética dos valores e da espiritualidade. Só uma mente sensível que capta o grito do oprimido junto com o grito da Terra se move para curar e salvar. Sem esta disposição continuamos reféns do velho paradigma que coisificou toda a realidade. Precisamos entender que tudo no universo e na terra é constituído de relações. Todos estamos enredados em teias de relações, onde tudo tem a ver com tudo em todos os momentos e em todas as circunstâncias. A partir desta compreensão nos sentimos parte da natureza e não donos dela, partes da própria Terra e do universo, com o sentimento de uma responsabilidade coletiva de salvaguardar e cuidar desta herança sagrada que nos foi legada pelo universo ou por Deus. Sem essa conversão ecológica profunda, de que fala o Papa Francisco, não encontremos solução para nossos problemas atuais. Mas vale a convicção de que o espírito humano face a crises axiais se torna criativo, projeta alternativas viáveis e rasga um novo caminho. E os portadores de fé creem no que diz o livro da Sabedoria: “Deus é o soberano amante da vida”(11,26). Se for verdadeiramente apaixonado pela vida, Deus não permitirá que ela fracasse vergonhosamente por causa da irresponsabilidade humana. Farei minhas as palavras esperançadoras do Papa Francisco no final de seu texto ecológico: ”Caminhemos cantando, que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tire a alegria da esperança”(n. 244).
Nota bene: estes temas são aprofundados no meu recente livro: Brasil:concluir a refundação ou prolongar a dependência, Vozes 2018.

Um comentário:

  1. tudo que li considero meus pensamentos tb.amei.
    foi td de encontro com minha filosofia de vida.amei esta entrevista.quisera eu que milhões a lessem.mas pusessem em prática para fazer deste planeta um lugar melhor de se viver.

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