QUARENTA E OITO horas após um homem disparar pelo menos seis vezes – provavelmente, com uma pistola calibre 9 milímetros, que até agosto passado era de uso restrito às Forças Armadas – contra manifestantes que acampam em Curitiba para protestar contra a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, na madrugada de sábado, ferindo duas pessoas, um eloquente silêncio emana da provinciana capital do Paraná e de outros pontos do Brasil.
É imensa a lista dos que preferiram calar-se a vir a público repudiar um ataque armado a manifestantes políticos, acontecido quando a maioria dormia. Ela inclui um punhado de presidenciáveis, entre eles Geraldo Alckmin e Álvaro Dias, a recém-empossada governadora do Paraná, Cida Borghetti, mulher do ex-ministro da Saúde Ricardo Barros, que foi líder da bancada de Lula na Câmara, passa também pelos sempre prolixos, em redes sociais, procuradores Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima, ambos da força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal, chegando ao juiz federal Sergio Moro. Todos, até agora, mudos.
Cada um deles, imagina-se, teve seus motivos. No caso dos presidenciáveis, parece óbvio que a escolha passa pela ameaça eleitoral que Lula representa como líder de dez entre dez pesquisas realizadas nos últimos meses – ainda que ele seja, por enquanto, carta fora do baralho, por causa da condenação em segunda instância no caso do tríplex. Para os procuradores e juízes da Lava Jato, quiçá tenha pesado o clima de animosidade cuidadosamente cultivado pelos advogados do ex-presidente durante as audiências dos processos de que o petista é réu.
Quaisquer que sejam as razões, nada justifica a péssima escolha. Mesmo uma breve declaração de Moro – o super-herói na cidade que adotou a alcunha de “República de Curitiba”, onde o apoio à Lava Jato se alimentou de um histórico anti-petismo – repudiando o atentado teria peso considerável contra a violência. Cabe lembrar que, em maio de 2017, às vésperas da chegada de Lula à cidade para um depoimento, o juiz gravou um vídeo, distribuído pela mulher dele no Facebook, pedindo para que “quem apoia a operação Lava Jato” não se manifestasse. “Não quero que ninguém se machuque”, justificou-se. Por que se calar agora, quando uma pessoa está hospitalizada com um tiro no pescoço?
O mesmo vale para Dallagnol – que disse ter feito “jejum e oração” pela manutenção das prisões após condenação em segunda instância – e Santos Lima, o mais barulhento da turma paranaense da Lava Jato. A não ser que eles julguem que um ataque a tiros contra uma manifestação política deva ser tomado como algo corriqueiro, o silêncio é perturbador.
O fato é que a boca fechada de Borghetti, Moro, Dallagnol, Alckmin, Dias e outros tantos funciona, na prática, como um salvo conduto a quem disparou contra os manifestantes – e para que outros ataques do tipo venham a ocorrer. É a segunda vez que militantes do PT são atacados a tiros. Em nota, a secretaria estadual da Segurança Pública disse que: “Todas as forças de segurança do estado estão trabalhando de forma conjunta para identificar e prender o suspeito dos disparos”. A mesma secretaria que investiga o ataque de 27 de março passado, quando dois ônibus da caravana de Lula foram alvejados no oeste do Paraná. Um mês depois, sequer há suspeitos identificados.
Única figura pública local não alinhada à Lula a falar sobre o assunto, o prefeito de Curitiba, o camaleônico Rafael Greca, ex-lugar-tenente dos adversários ferrenhos Jaime Lerner e Roberto Requião, hoje abrigado no minúsculo PMN, não condenou claramente o ataque. Pelo contrário, gastou mais palavras, na postagem em sua página no Facebook, para criticar a manifestação com queima de pneus numa avenida da cidade, montada para protestar contra os disparos ao acampamento.
Se a motivação do ataque foi enfraquecer o acampamento lulista, os tiros saíram pela culatra. Eles terminaram por aumentar a simpatia a um movimento que, a cada dia transcorrido desde o encarceramento do ex-presidente, em 7 de maio, parecia se exaurir e se reduzir a um mero gerador de factóides políticos.
Para quem acompanha o dia-a-dia da vigília montada pelo PT nas cercanias da Polícia Federal de Curitiba, é difícil não se lembrar de “A Montanha dos Sete Abutres”, filme de 1951 dirigido por Billy Wilder. Encarapitado no alto de um morro no Santa Cândida, extremo norte da cidade, o prédio da PF (construído pela Schahin Engenharia, empreiteira enroscada na Lava Jato, e entregue em 2007, no segundo mandato de Lula) está permanentemente emoldurado por bandeiras, faixas, barracas, caixas de som e um bocado de gente vestida de vermelho.
A obra-prima de Wilder conta a história de um decadente repórter, interpretado por Kirk Douglas, que vê na notícia de um homem preso em uma mina desativada no deserto do Novo México a chance de sair do ostracismo e voltar a ter seu nome nas manchetes nacionais. Charles Tatum, o repórter, não só faz de tudo para retardar o resgate do simplório Leo Minosa como transforma a região próxima à entrada da mina numa atração turística. Enquanto uma equipe de resgate lentamente tenta resgatar Minosa, centenas de pessoas, atraídas pela cobertura sensacionalista, chegam ao local para acompanhar o desfecho do caso. Enquanto isso, esbaldam-se num parque de diversões, bebem e cantam: “Logo veremos você fora da prisão, Leo”.
Mas, nessa alegoria, Lula é ao mesmo tempo o repórter Charles Tatum e o mineiro Leo Minosa. Se a decisão judicial que retirou a liberdade do ex-presidente foi o estopim para que apoiadores, por julgá-lo injustiçado, embarcassem de vários pontos do país para acampar nas inclinadas e esburacadas ruas do Santa Cândida, também é certo que ele e o PT colhem diariamente os dividendos políticos gerados pela narrativa do homem de origem humilde tornado preso político por ter sido o presidente mais popular da história do país – ainda que a história real não seja necessariamente essa.
É claro que seus aliados o desejam solto, ninguém ali fora quer prolongar a prisão de Lula. Enquanto isso não acontece, no entanto, um fato político é criado todos os dias, quando petistas e aliados de alta patente – por vezes, nem tão alta assim – comandam gritos de “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” para Lula. Na última segunda, a tarefa coube à ex-presidente Dilma Rousseff. “Boa tarde, Lula. Eu te amo, Lula. Eu te amo, Lulinha paz e amor!”, gritou, de microfone em punho, puxando o coro.  Os manifestantes juram que, do cômodo localizado uma quadra e meia adiante e quatro andares acima, Lula ouve e se emociona. Quem trabalha no prédio da PF, porém, diz que o vozerio chega abafado e ininteligível à sala com banheiro que serve de cárcere. Não importa.
Fora as cotidianas manifestações políticas, há um pouco de tudo no acampamento, de cantorias a São Jorge à confecção coletiva de uma manta “para aquecer o presidente Lula”, passando pelo lançamento de “Feminismo Em Comum: para todas, todes e todos”, da filósofa Marcia Tiburi. (Foi um sucesso: uma fila formou-se, e Tiburi teve de passar algumas horas debruçadas sobre os exemplares, caneta em punho, para autografar perto de 500 deles, segundo a organização.) A ordem é ter uma programação que mantenha a militância animada e a imprensa por perto. Para isso – como diz Charles Tatum, em certo momento de A Montanha dos Sete Abutres –, “se não há notícias, eu saio e mordo um cachorro”. (No jornalismo, um velho ditado diz que cachorro mordendo um homem não é notícia; mas o contrário, sim.)
Ironicamente, o PT tem tido uma notável ajuda da Justiça nessa missão. A juíza substituta Carolina Moura Lebbos, responsável por cuidar da execução da pena de Lula, comanda duramente o processo. Impôs um inexplicável sigilo, incomum no braço paranaense da Lava Jato. E resolveu ser inflexível com os pedidos da visita a Lula.
Numa só canetada, Lebbos rejeitou pedidos de visitas de figuras como o ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel, o teólogo Leonardo Boff, o ex-senador e vereador paulistano Eduardo Suplicy, a ex-presidente Dilma Rousseff e o presidenciável pedetista Ciro Gomes. Também barrou o acesso de uma comissão externa da Câmara dos Deputados, que pretendia inspecionar as condições em que o ex-presidente é mantido. Ao fazer isso, alegou seguir as regras da PF, pelas quais, habitualmente, só familiares e advogados têm acesso aos presos. Mas reforçou a narrativa da prisão política de Lula.
Na resposta ao pedido de visita urgente feito por Esquivel, um octogenário premiado com o Nobel da Paz em 1980, ano em que Lebbos sequer era nascida, ela anotou, num arroubo de grosseria:“A prévia indicação de data pelo requerente baseia-se apenas em critério de comodidade”. Esquivel requereu a visita no dia em que estaria em Curitiba. Para boa parte da opinião pública alinhada com o PT, a imagem de Boff fragilizado, fotografado sentado e, com as costas arqueadas, apoiado numa bengala e buscando refresco numa rara sombra à porta do prédio, soou como falta de elegância da Justiça com o teólogo grisalho de 79 anos, barba à moda de um simpático Papai Noel.
O ataque do último sábado recolocou os holofotes sobre a vigília dos lulistas. Nesta terça, primeiro de maio, as seis centrais sindicais brasileiras engoliram desavenças históricas e programaram um ato conjunto em Curitiba. Até a Força Sindical, de Paulinho da Força (SD-SP), que votou pelo impeachment de Dilma Rousseff, promete gritar pela liberdade de Lula e contra a violência. O ato conjunto das centrais espera reunir milhares de pessoas no centro da cidade, tendo como chamarizes shows de Beth Carvalho e Maria Gadú, entre outros. Antes, irão passar pela vigília no Santa Cândida.
Foto no topo: banheiro químico atingido por tiros no acampamento. Uma pessoa que estava dentro foi ferida por estilhaços.